Amargo doce que eu sorvo / Num beijo em lábios de prata. /Tens o perfume da mata/ Molhada pelo sereno. /E a cuia, seio moreno,/ Que passa de mão em mão/ Traduz, no meu chimarrão,/Em sua simplicidade, / A velha hospitalidade / Da gente do meu rincão.
Ritual para dentro, da solidão; ritual para fora, da solidariedade. Assim o define Fabrício Carpinejar - e este nem é um de seus poemas. Carpinejar é de Caxias do Sul e falando assim do chimarrão reúne as duas coisas necessárias para falar do assunto: autoridade gauchesca e lirismo. Bebida comunitária, símbolo tradicional, reunião de tão diversos povos de tão diversas fronteiras, gerações, origens, canções e saudades. Está na infusão da erva mate que passa de mão em mão o relance de um universo inteiro onde a natureza parece mais perto.

A palavra marron em português quer dizer, entre outras coisas, clandestino. No castelhano, cimarrón, em significado empregado do México ao Prata, significa chucro, bruto, bárbaro e serve para designar animais domesticados que, após fugirem, se tornam selvagens. A última analogia é certeira e diz daquele enunciado: um ritual para dentro, da solidão. O gosto amargo, o cheiro, o ato de sugar a infusão. De repente se está só, como um detetive de filme dos anos 50 está só com a fumaça de seu cigarro em preto e branco, mas, ao invés de comungar a cidade, comunga-se o verde e o mato.

A bebida é indígena e você descobre que ficar perto assim da terra é aconchegante.
Foi pelo início do século XIX, no contato com os guaranis naturais do atual Paraguai, que os aventureiros europeus deram com o chimarrão. Os nativos desta região possuíam o costume de acocorar-se em roda para partilhar a infusão de uma erva seca, cortada e moída; chamavam-na de ka'ay, erva de água (para a botânica atual, Ilex Paraguaiensis). Deve ter sido como desejava Oswald de Andrade naquele poema Quando o português chegou / Debaixo duma baita chuva / Vestiu o Índio / Que pena! Fosse uma manhã de sol / O Índio tinha despido/ o português. E o índio despiu não só o português, mas o espanhol, o germânico, o africano e, quiçá, o arábico, que migraria mais tarde para aquela região. Hoje, mais do que um hábito largamente difundido, o mate é profundo signo cultural da Argentina, do Uruguai, do Paraguai e de regiões ao sul do Brasil.

Embora não seja tão formal quanto um chá chinês, o ato do chimarrão, sendo um ritual, possui seus cerimoniais: a infusão deve ser preparada pelo dono ou chefe da casa e é este o primeiro a tomar da cuia. Isto é visto por muitos como um sinal de hierarquia, mas, na verdade, ninguém mais altruísta do que aquele que prepara o chimarrão: afinal, a primeira cuia é também a mais amarga. Ao terminar, ele deve preencher novamente o recipiente com água e passar para as mãos do próximo na roda. Assim, o companheiro ao lado sempre beberá a cuia mais agradável recebida de mãos amigas. Este é o ritual para fora, da solidariedade. Atenção: não passe a cuia adiante sem antes tê-la feito roncar (é um ruído parecido com o final de um milkshake), pois tal ato é muito mal visto. E a cuia sempre deve ser transmitida adiante com a mão direita. Coisas da tradição!

Ilex Paraguaiensis em seu meio natural.

Preparar – e tomar – o mate pode parecer uma tarefa difícil, mas é questão de prática. Ser do sul, bailar o vaneirão ou ser amante de tango é opcional. No vídeo abaixo você vai aprender como preparar essa infusão que, como se não bastasse, é um excelente estimulante e faz bem à saúde. Tendo uma cuia, erva, água quente (não fervente!) e uma garrafa térmica, já se está apto a beneficiar, além de apaixonar-se, por este momento tão saboroso e gaudério.

Mais em: http://obviousmag.org/archives/2010/09/o_chimarrao_delicias_e_lirismos_do_sabor_gauderio.html#ixzz10t8OsKm4

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